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DECISÃO JUDICIAL NÃO SE DISCUTE, CUMPRE-SE! Mas, pode-se ao menos discutir o autoritarismo dessa falsa premissa?!

Há tempos não ouvia com tamanha ênfase essa assertiva: Decisão judicial não se discute, cumpre-se! Mas não é que ouvi recentemente!

Como? Juízes, não sóis “Deuses”, homens é que sóis! Se até sobre a existência Divina e as diversas formas de interpretar a religiosidade é viável e factível estabelecer discussões (ainda que em geral nessa seara haja atos de fanatismos e intolerâncias, puro niilismo, como assevera Nietsche, comprovado historicamente por grandes enfrentamentos), porque atos mundanos (resultado da ação humana) não podem ser objetos de divergências e debates?

Esse é um legado autoritário, reacionário e de uma soberba sem igual. Não existem nas relações humanas temas insuscetíveis de discussões. Não estaria o Poder Judiciário, justo por isso e de modo algum, alheio a críticas ou imune à possibilidade de discussões e debates acerca de temas sobre os quais decidiu, mesmo que definitivamente e em última instância.

Todo ato administrativo – e a decisão judicial é uma vertente dele – é em suma um ato político. Por mais que se queira atribuir ao Judiciário a capacidade da imparcialidade, trata-se de mito inalcançável. A tarefa de julgar é humana, assim como humanas são as decisões, as paixões, os preconceitos (no sentido de conceito prévio sobre determinado fato), o aprendizado decorrente dos costumes, valores morais, éticos, religiosos, suas opções políticas (ainda que não declaradas), sua ojeriza, indiferença ou simpatia com o jurisdicionado e suas condutas, etc. Ao ser chamado a decidir, o julgador não consegue – e isso é natural – isolar-se do mundo, cindindo-se unicamente no seu saber jurídico. Ainda que isso fosse possível (registra-se que aqui se trata de uma mera hipótese), a opção pura, simples e sempre pela legalidade, sem nenhuma contextualização ao caso concreto, desprezando quaisquer outros valores e circunstâncias, é uma postura política sequer de isenção, mas de conivência com um modus político vigente, ainda que resultado de uma legislação antiga e não mais consentânea com a realidade social.

Não se quer com isso propor a negativa da lei, ato do legislador e legítimo representante do povo, cuja atividade integra o princípio da tripartição dos poderes (apesar de nem toda legislação, lato sensu, emanar exclusivamente do Poder Legislativo). Porém, deve-se ter presente que, mesmo sob o aspecto jurídico, existe uma hierarquia entre as normas, onde o princípio também se insere, não podendo estes últimos serem desprezados ou diminuídos frente às regras (leis) no momento do exercício do ato de julgar ou de interpretar o direito.

Porquanto, numa sociedade realmente democrática, não existe ato público/administrativo e privado insuscetíveis de críticas e discussões. Na verdade (e eis já uma contradição), não existem verdades absolutas. O que se dirá então em relação às ciências sociais onde não há uniformidade de entendimentos e o conhecimento não é exato!

O fato, todavia, de se permitir discussões sobre as decisões e de se permitir discordâncias sobre o que fora decidido, não implica, óbvio, na possibilidade do descumprimento da decisão judicial. A propósito, é da natureza humana não se conformar com a decisão que lhe é desfavorável. Mas a obrigatoriedade do cumprimento da decisão, como preceito elementar num Estado Democrático de Direito, repito, não esgota a possibilidade ou impede a discussão e debate sobre o tema.

Diante do princípio da separação dos poderes, os integrantes do Poder Judiciário são dotados de autoridade (não de poderes autoritários) para dizer o direito no caso concreto. Não significa que sejam dotados de poderes supernaturais, ou de um saber magnânimo, de maturidade inconteste, ou de convicções seguras e acertadas, acima de todas as análises e projeções expandidas por outros setores políticos e do conhecimento, ou até mesmo pelo senso comum. Ainda que isso, eventualmente, possa ocorrer numa situação concreta, inibir discordâncias ou discussões, por qualquer indivíduo, sobre assuntos decididos finalmente pelo Judiciário, é firmar a arrogância da diferença, autoritarismo puro e ilegítimo diante de um texto constitucional que propugna pelo pluralismo político e liberdade de expressão.

Para além de uma suposta virtuosidade dos integrantes do Judiciário, não existe nada de excepcional na figura humana dos julgadores. São pessoas como qualquer outra (ainda bem!), que convivem no mesmo espaço público de todos, enfrentam as mesmas atribulações do dia-a-dia, têm suas convicções para fora do jurídico (até porque não se é possível isolar o jurídico de outras realidades) e apenas por condições e regras previamente delineadas, em virtude da investidura no cargo de magistrados (e não pensem que esse é que os tornam superdotados por ter obtido sucesso em concurso; aliás, nem todos os magistrados ingressam na carreira por concurso e nem por isso podem ser tidos como piores ou melhores julgadores), adquirem a incumbência e tarefa de julgadores.

Os melhores julgamentos não decorrem de um ato de soberba do julgador ou de seu isolamento das coisas do mundo, por vezes soluções dissociadas da realidade. Portanto, quanto mais conectados com o mundo real, mais atentos aos mandamentos constitucionais, sobretudo ao primado de que as regras do devido processo são claramente garantistas, como expressas e vastamente delineadas no texto constitucional de 1988 (por mais que a ignorância reacionária de muitos, inclusive e lamentavelmente dentro do próprio Judiciário, tendem a negar este fato); ainda, quanto mais abertos às discussões e debates sobre os temas que lhes são entregues para decisão e nisso, quanto mais se permitirem inovar, acolher novas lições, compreender, melhores serão os resultados daí decorrentes e que, nem por isso, são insuscetíveis de novas reflexões, debatidos ou questionados, em qualquer esfera desde que, até aí, não atinja a coisa julgada.


A RETÓRICA DA MELHOR DOUTRINA. Isso é tão ridículo quanto autoritário, a ponto de representar o que se tem de pior num regime democrático.

O contumaz usuário do mais puro “juridiquês” (linguagem supostamente rebuscada, empolada, que não diz precisamente o direito. Puro enfado para falsos juristas que se encantam com o discurso vazio, autoritário e tradicionalista, sem mínima adequação à realidade social), sempre se enforca nas suas próprias diabruras, enfiando os pés pelas mãos na convicção de que está se dando bem.

Trata-se de uma prática ainda usual por alguns profissionais do direito, que imaginam seja esta linguagem diferenciada (com seus equívocos e vacilos) ferramenta necessária de trabalho. Tem os cultores que disseminam a praga, arraigados às velhas tradições e sob estas falsas erudições sentem-se condicionados a propagarem ideias.

Aqueles que acompanham tal escrutínio, principalmente no exercício da atividade forense, valem-se destes sofistas para resumir qualquer debate, sobretudo quando acoados em seus estreitos limites. Neste caso, a solução é simples. Basta rememorar um velho autor, também com suas prosopopéias e tudo se resolve, afinal, quem ousara discutir diante: … da melhor doutrina que trata do assunto … ; … da doutrina de escol que reporta ao assunto da seguinte forma…; … do tema o qual a melhor doutrina já sentenciou….

Isto é, não existe mais possibilidade de dissenso porque a tal doutrina especial, suprema, transformou o assunto em ponto irretorquível, não se podendo mais questioná-lo.

Este discurso se especializou em esvaziar o debate. Não há mais nenhuma possibilidade de manifestação depois que o melhor se expõe. É como se ficasse na retaguarda, esperando a solução do problema. Somente em último caso é que é convocado para dar o tiro de misericórdia. Não existe chance alguma para quem pretende enfrentá-lo, e geralmente é lançado na bacia das almas, quando os recônditos valores se veem acuados frente a uma nova visão sobre o assunto, para o qual não querem ceder (porque seus preconceitos, seus valores morais, sua falsa sabedoria e tantas outras vicissitudes não permitem ao menos a recepção de novas ideias).

O interessante é que a definição do melhor está na tibieza de quem a utiliza, pela ausência de uma posição crítica e, sobretudo, falta de respeito à diversidade. Aquilo que é repetido como a melhor doutrina pelo usuário, é apenas seu ponto de vista ou de alguns – às vezes, nem isso, mas apenas a lei do menor esforço, porque esta afirmação evita qualquer sacrifício exegético, afinal já está pensado – e que pode perfeitamente parecer uma lastima aos olhos de outros, antipáticos àquela alternativa doutrinária.

Só é possível a ideia de um posicionamento melhor, sem a possiblidade de discussão e debate, num regime autoritário, onde não há expressão legítima do pluralismo político e democrático.

E este autoritarismo não se restringe ao termo “melhor”, mas ao erro terrível quanto à referência “doutrina”. A expressão começa com este equívoco originário, porque não existem doutrinas jurídicas, mas doutrina jurídica (singular). Assim como existe uma doutrina cristão com vertentes distintas conforme a concepção de cada segmento do cristianismo: católico, evangélico, kardecista, etc. Doutrina é o conjunto de ideias que forma um ramo do conhecimento ou de expressões sobre determinada área de conhecimento.

No caso das ciências jurídicas, assim como em diversos outros ramos do saber, justamente por não dispor de um método matemático e exato para suas aferições e resultados, existem entendimentos diversificados, conforme a postura daquele que emite suas opiniões e interpretações sobre o fato jurídico.  Nem por isso existem diversas doutrinas. O que ocorre neste caso são posições de doutrinadores que opinam diversamente sobre um mesmo fato e que está longe, portanto, de representar “a doutrina jurídica”.

Este é o primeiro passo para desmascaramento deste pedantismo linguístico, e que se revela um verdadeiro sofisma.

O segundo ponto a ser destacado é a autoritarismo de quem se vale deste argumento para finalizar um entendimento ou para dar números finais à discussão. Não existe, é certo, neutralidade de conhecimento, principalmente quando diante da possibilidade de argumentação tendente a discorrer deste ou daquele modo sobre o mesmo objeto. Toda possibilidade de escolha envolve critérios específicos e que reflete o animus do interlocutor. Nunca será um processo neutro, porque ao fim significam as visões do interlocutor, ainda que vendo com olhos alheios. A utilização da expressão melhor doutrina, portanto, é sempre dotada de arrogância, com menosprezo a qualquer outra forma de pensar, decidir, e com a desqualificação de posições contrárias.

Para o urubu, a melhor rês é a perrengue, à beira da morte. Moscas adoram fezes e vermes se proliferam nas entranhas intestinais de outros animais. O melhor depende dos interesses daqueles que o anuncia. Tudo depende da perspectiva do interlocutor.

Mas a questão do melhor passou a ser de tal modo relativizada e banalizada que não é incomum, por exemplo, ao se dar notícia da morte de um conhecido, que alguém diga que o morto partiu para uma melhor. Como se sabe? Afinal, o comunicante já esteve lá? Porque não ficou? Ou, se está tão convicto de que a condição de defunto é melhor, porque não aproveitou o bonde? Veja que o melhor, neste caso, é apenas a constatação do imponderável e, embora seja natural temer o desconhecido, “é melhor” apostar que será melhor, assim as pessoas conseguem amenizar suas aflições com a perda do falecido e com o próprio futuro inevitável.

Todo ponto de vista é a vista de um ponto, já o disse Leonardo Boff. O olhar sobre determinada perspectiva é apenas um olhar. Nem todo mundo pode ver o eclipse solar a cada acontecimento e ainda assim ao mesmo tempo. Dependerá do ponto em que esteja na face da terra.

Melhor é, assim, somente um ponto de vista.

Ainda bem que existem diferenças e pontos de vistas distintos. Imaginem quanta chatice se tivéssemos que conviver com a mesmice, com a impossibilidade de novas reflexões, porque tudo já estaria dito e atingido pelo imutabilidade? O pluralismo político decorre desta imersão na diversidade, no respeito às diferenças e no convívio entre seres desiguais (não em direitos).

O conhecimento jurídico não é uma ciência exata, embora até mesmo nas ciências exatas se é possível divergir. As relações humanas são múltiplas, sofrendo constantes alterações, modificações e evoluções, de modo que não se pode estagnar um raciocínio, sobretudo jurídico, sobre determinado tema e, a par de enuncia-lo como fruto de “uma melhor doutrina”, impedir novas digressões. Assim, o conhecimento doutrinário expandido por alguém (ou alguns), por mais que seguido e copiado por outros tantos, nunca pode ser classificado como a melhor doutrina.

Nesta ordem de ideias, todo fato jurídico é multifacetado, como um caleidoscópio que se altera a cada semicírculo. O intérprete é apenas um visionário que se situa em determinado ponto para análise do caso concreto, e não aquele que dita ensinamentos doutrinários, abstratamente, para situações eventuais e futuras. Até mesmo a legislação é um olhar hipotético e eventual sobre determinado fato, cabendo sua adequação a cada necessidade de seu uso.

O exercício hermenêutico exige do intérprete esta acomodação do fato concreto com a norma posta e com as demais fontes do direito, conforme seu ponto de vista. Podemos e devemos nesta tarefa invocar um ou outro entendimento, copilar jurisprudências, fazer referências a posições doutrinárias, que entendamos ser adequadas ao fato. Conquanto não podemos jamais ter a arrogância de afirmar que esta forma de ver as coisas “é a melhor” delas. Fosse assim, não poderia haver o dissenso e não se falaria em duplo grau de jurisdição.

Um dos princípios básicos do Estado de Democrático de Direito, como enaltecido no texto constitucional, é a prevalência do pluralismo político (art. 1º, IV, CF) ou a concepção do direito à diferença. Tal fato significa a liberdade de expressão e a necessidade de convívio com a multiplicidade. A aceitação do outro, a alteridade, o respeito pela diferença.

No cenário jurídico, o emprego desta expressão “melhor doutrina” é, assim, apenas o reforço do autoritarismo, da imposição de determinada argumentação jurídica sem a mínima perspectiva, ao menos, de pesquisa em novas concepções. É uma tentativa de sedativo para o insurgente a fim de acomodá-lo de qualquer resistência a um modelo de dominação e exploração vigorante, e um relaxante para o conformado, acrítico, que não precisará ter nenhum peso de consciência.

Em regra, a dita melhor doutrina é aquela que se firmou no consenso dos confortavelmente aquinhoados com os beneplácitos de uma sociedade desigual. E ela existe exatamente para atender este ajeitamento e justificar a legalidade, a juridicidade e a necessidade de ordenação política como forma de tranquilidade e paz social. Só que se trata de uma perspectiva não plural e por isso antidemocrática. A retórica eficaz deste discurso jurídico e sua disseminação, é que faz dele o suposto prosar “verdadeiro” e “melhor”, e que no fundo serve para a mantença do status dominante.


ENTRE AS VÍSCERAS LINGUÍSTICAS, EIS UM FALSO ÓRGÃO. A utilização incorreta do termo órgão, para ente privado, reforça o modelo autoritário da imposição do direito pelo uso errôneo do vernáculo.

A expressão órgão de proteção ao crédito surgiu com o próprio serviço prestado por empresas particulares de armazenamento de informações de consumidores e venda destes preciosos dados. Dadas as suas naturezas, e a forma com que tratam as informações que colhem e repassam mediante pagamento, só podem ser frutos de estruturas montadas no regime de exceção, quando o bisbilhotamento fora de qualquer apara jurídica era algo trivial, sem qualquer preocupação com os direitos fundamentais dos investigados e cadastrados. Em muito se assemelham aos mecanismos oficiais do regime ditatorial de repressão e captação de informações, vivenciado no Brasil no período do final da década de 1960 a meados da década de 1980.

O impressionante é que, não obstante a tudo isso, estes serviços prevalecem nos dias atuais, ainda que sob os auspícios de um Estado Democrático de Direito, sendo ainda naturalmente denominados como órgãos de proteção ao crédito, ao tempo que haveriam de ser rechaçados como verdadeiros instrumentos de afronta aos direitos fundamentais e ao princípio democrático.

Se não há objeção não é pela falta de reiteração equivocada do uso do termo (ao contrário, silêncio e comodismo), com o intuito de fazê-lo válido e as atividades que desempenham. Basta um mínimo de conhecimento jurídico para se saber o tremendo engodo técnico/jurídico na expressão e do conteúdo ideológico deste emprego incorreto.

Todavia – e isso é gravíssimo! –, não se ouvem vozes no mundo jurídico a desvelar o emprego desta expressão, mostrando seu aspecto totalitário. É preocupante (assim como também atormenta o conformismo com tantas outras inconstitucionalidades latentes), a falta de críticas jurídicas que venham repudiar a forma com que estas empresas privadas desempenham suas atividades, servindo como banco de dados de cadastro negativos de pessoas, bem assemelhadas aos verdadeiros órgãos de repressão de regimes ditatoriais, com suas agências de arapongagem e levantamento de informações secretas, à  revelia dos investigados e cadastrados. Depois, tudo é repassado a terceiros, mediante pagamento, sem o consentimento e ciência do prenotado.

Aquilo que o jurista não vê, em meados da década de 1980, e no limiar da atual Constituição Federal, o professor (não jurista) Milton Santos, um dos grandes intelectuais que o Brasil produziu no século passado, já advertia como um absurdo a manutenção destes serviços. Para ele:

Que as firmas se assemelham a instituições nos países onde funciona o capitalismo monopolista de Estado é fato já arquiconhecido. Mas em certos países como o Brasil, onde a figura do cidadão é praticamente inexistente, as firmas se comportam impunemente e de forma abusiva.

Veja-se, por exemplo, o famigerado Serviço de Proteção ao Crédito. Entidade impossível de se conceber onde haja um mínimo de respeito pelas pessoas, em nosso país age naturalmente e se comporta como se fosse uma verdadeira instituição pública. Esse SPC funciona ao mesmo tempo como uma central ilegal de informações e um verdadeiro tribunal privado. Manipula as informações que obtém e que deveriam, ao menos, ser confidenciais, para julgar, condenar ou perdoar os consumidores, segundo suas próprias regras. (In: SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. 5ª ed. São Paulo: Studio Nobel, 2000. p. 23 (coleção espaços). Continue lendo


O QUE NÃO ESTÁ NOS AUTOS NÃO ESTÁ NO MUNDO! E então, está onde? (da série: Aforismos jurídicos)

Mas espera aí! O mundo não se reduz aos autos. Aliás, o mundo seria muito melhor se não fossem os autos, ou se deles não dependesse.

Sendo então inevitáveis, será que fatos notórios, sentidos socialmente, são imperceptíveis ao juiz se não tiverem registro nos autos? É a ordem principiológica do direito, sobretudo quando assegura os direitos fundamentais, invenções de jusfilósofos e que servem apenas para embelezar o texto constitucional?

E como se revelam os fatos nos autos? Como se vê a riqueza e a pobreza, a fome e o desperdício, a ganância e a miséria, a exploração e a humilhação, os direitos e a indiferença, etc.? Num simples invólucro de papel, num amontoado de páginas que prezam mais o rigor formal do
que as descrições das pretensões?

Como se verifica o desequilíbrio palpável, porém não resumido a termo, entre as partes? É o juiz um agnóstico a ponto de aceitar o princípio da igualdade sob a perspectiva meramente formal: todos são iguais perante a lei?

A quem serve, afinal, o aforismo: o que não está nos autos não está no mundo!? De uma coisa é certa. Em nada serve para aqueles que não têm acesso ao processo, no sentido de efetividade de defesa de seus direitos, porque não conseguem reproduzi-los em formas processuais adequadas, embora em si sejam a própria forma de suas negativas.


A REALIDADE VERDADEIRA SOBRE O AFORISMO VERDADE REAL: não existe verdade que paira acima das incertezas! (da série: Aforismos jurídicos.)

Eu pensei que não ouviria mais o termo verdade real, senão nos velhos manuais de direito e em decisões judiciais e peças jurídicas antigas. Porém, qual foi minha surpresa quando outro dia, ao indeferir um pedido de prova numa audiência preliminar, o advogado da parte ré ao interpor o agravo retido, invocar o velho brocardo como, e aproveitando para fazer um trocadilho, o a expressão verdade real fosse de fato uma realidade verdadeira.
Para arrazoar seu recurso deitou “longas verdades” – não sei exatamente se para tentar impressionar-me, à parte adversa, seu próprio constituinte, ou se a platéia formada quase por alunas de graduação em direito nas suas atividades complementares – em torno deste dogma, numa expressividade e eloquência como quem trouxesse ao palco uma novidade acadêmica.
Nisso afirmou categoricamente que as partes têm a obrigação de dizerem a verdade e daí a importância dos depoimentos pessoais (ainda que se quisessem do depoente uma confissão de um fato negado na inicial, razão inclusive do ajuizamento da ação).
Não vou adentrar nas razões do recorrente, sobretudo diante da necessidade que se impunha em prol da defesa do seu constituinte. O que interessa neste comentário é, assim como tantos outros o fazem, desmascarar mais este aforismo jurídico e mito linguístico de enormes repercussões no processo e ao cabo, aos indivíduos fora dele.
O termo verdade real é mencionado inclusive como princípio, por grandes nomes da doutrina processual (Moacyr Amaral dos Santos; Antônio Cândido, Ada Pellegrini e Cândido Dinamarco; Humberto Theodoro Júnior) (1) , para afirmar que cabe ao juiz a busca da verdade, a partir do conjunto de provas apresentado nos autos, trazidas por iniciativa das partes ou por providência de ofício do próprio juiz quando a lei o permitir.
Descrito assim, com tamanhas autoridades do processo, passa a ser de fato um dogma irrefutável. O resultado disso é que a decisão judicial passa a ser quase um mantra, porque fruto da verdade anunciada pelo juiz. Todavia, a versão judicial é apenas a inferência indutiva (2) , porque o juiz tem acesso apenas a reconstrução histórica do fato passado (3) . Jamais isso se reproduz fielmente e ainda que se pudesse, não traria uma única verdade, porque os fatos são sempre multifacetados, feito uma figura geométrica postada num círculo rodeado por pessoas onde cada qual pode, embora vendo o todo, enxerga faces completamente diferentes pela cor.
Assim, não se é possível afirmar que existe uma única verdade sobre os fatos, ou, em outras palavras, não há verdade absoluta (outra redundância para verdade. Verdade, pelo que se quer ontologicamente, não pode ser irreal, assim como poder ser relativa). No processo, e daí a própria razão de sua existência, ocorrerá no mínimo duas versões antagônicas, conforme as pretensões das partes. Ao final, com o ato decisório, uma delas poderá sobressair, advir de um mix de ambas, ou, ainda, emergir outra versão completamente inovadora. Não se pode assegurar, entretanto, que a partir da sentença as demais “verdades” (versões) tornaram-se mentiras, mas apenas teses não acolhidas.
O fato é que este aforismo da “verdade real” – que eu pensei não fosse mais usado nas salas de audiências – decorre de uma percepção autoritária e inquisitiva do processo, como adverte Aury Lopes ao abordá-lo no processo penal. Como explica o autor, trata-se de uma artimanha engendrada nos meandros da inquisição para justificar o substancialismo penal e o decisionismo processual (utilitarismo), típicos do sistema inquisitório.(4)
O máximo que se extrai num processo é uma versão final, que depois de esgotadas as vias recursais, pelo decurso de prazo ou pela limitação de novos recursos, é denominada de coisa julgada, passando a ser a versão imutável processualmente. Nunca verdade real que jamais existe no processo ou fora dele.

Notas bibliográficas
(1) THEORDORO Jr., Humberto. Curso de Direito Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. Vol. I. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 29.; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo e outros. Teoria Geral do Processo. 16ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 64.; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 2º volume. 12ª edição. São Paulo: Saraiva,
1989. p. 80.
(2) FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez
Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 30-46.
(3) CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição: Princípio Constitucionais do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009. p. 213.
(4) LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal: e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007. p. 537.