Dentre os tantos problemas que afligem a prestação jurisdicional, por certo, a morosidade é o tema mais recorrente. Ouço isso desde quando iniciei o curso de direito, no ano de 1987. Tendo ingressado na magistratura em 1993, passei a ouvir com maior frequência e a me incomodar imensamente com isso. Mas ao mesmo tempo em que me via impedido de atender toda a demanda em menor tempo, constrangia-me (e ainda me constrange) o fato de eu dispor de tantas folgas durante o ano, com 60 dias de férias e agora, mais uns 20 de recesso forense. O jurisdicionado, e com toda razão, não compreende o motivo pelo qual o processo dele demora tanto, sobretudo se vai ao Fórum e descobre que o juiz está de férias, novamente.
É óbvio que o problema da morosidade não se debita somente a este fato. Sinceramente acho, inclusive, que não seja tão representativo assim para o curso do processo, até porque diversos atos são cumpridos na escrivania e pelas partes (embora isso não me faça concordar com a necessidade de tantas férias e folgas, porque isso fere o princípio republicano). Diversos questões devem ser analisadas, como o excesso de formalidades e de vias recursais; o aumento acentuado da demanda jurisdicional e que não é acompanhada na mesma proporção com os quadros judiciários; a desorganização administrativa nos tribunais que impede uma maior dinâmica e soluções eficazes para problemas simples (a preocupação é apresentar projetos e programas apoteóticos, de modo a dar visibilidade midiática aos seus formuladores, embora não represente efetivo resultado para solução dos problemas); e tantos outros.
Acontece que os mentores da Emenda Constitucional 045/2004 (e pode se dizer que o pai da criança foi o ex-ministro e presidente do STF, Nelson Jobim), que modificou parte da estrutura do Judiciário brasileiro (no falso engodo de modernização), atendeu claramente interesses econômicos e externos, buscando com a reforma somente os argumentos da efetividade, rapidez e segurança jurídica nas relações contratuais, sobretudo internacionais, a fim de atrair capital externo (tudo obra do BIRD, FMI e grandes conglomerados internacionais, apadrinhados pelos dirigentes políticos de suas matrizes, na concepção de um mundo globalizado).
Para contemplar esta pauta de reivindicações – não exatamente do povo brasileiro – editou-se a dita EC 045/2004, cujos propósitos claros e centrais foram: a) criação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, para cercar os excessos e fazer um controle administrativo das gestões judiciárias (tem conseguido algumas coisas, excedidos em outras, negligenciado e não alcançado soluções em tantas, por vezes preservando com suas decisões verdadeiros privilégios à magistratura); b) instituição da Súmula Vinculante, com o fim de tentar engessar os juízos inferiores, com o argumento da necessidade de segurança jurídica (merece um artigo próprio); c) fortalecimento da solução de conflito na esfera privada com o incentivo da instituição das vias privadas de equacionamento das demandas, forma discreta de enfraquecimento do Judiciário.
Como incremento a todas estas medidas, inseriu-se dentre os direitos e garantias fundamentais, o princípio da celeridade, o qual foi encampado pelo CNJ como razão de satisfação dos interesses dos jurisdicionados. Com isso, passou-se a exigir dos Tribunais rapidez na prestação jurisdicional, que por sua vez cobram dos juízes o cumprimento das metas fixadas pelo CNJ e a divulgação de números, como se aí estivesse a representação do sucesso de suas ações e da eficiência do Judiciário.
O que importa nesta corrida estatística é simplesmente a superação dos recordes anteriores. Não há nenhuma preocupação com os resultados efetivos, como se a eficiência no ato de julgar resumisse-se tão somente na decisão, sem qualquer enlevo para sua qualidade técnica e as razões decidir. Para isso, impõem-se fórmulas prontas vindas dos tribunais superiores e tudo passa a ser produzido em série, como numa verdadeira fábrica de decisões (longe de uma companhia de justiça). E aí de quem divirja!
Neste compasso o juiz já não é mais juiz. É um autômato batedor de carimbos em decisões e sentenças copiladas por assistentes e estagiários; detive de credores em busca dos devedores e de seus bens; burocrata que vive a preencher formulários estatísticos, a responder questionários, a bisbilhotar em sistemas digitais informações de jurisdicionados; rompedor dos direitos e garantias fundamentais porque os interesses individualizados no processo sobrepõem sem nenhuma justificativa plausível, contrariando assim o próprio dever de zelar por tais direitos. Tudo para atender as determinações do CNJ e das Corregedorias de Justiça.
Ao final, o juiz ainda bate do peito envaidecido diante de sua estatística, como um simples encolher de pilhas de autos, sem a mínima responsabilidade com os efeitos e consequências deste movimento. Porém, não consegue perceber que a cada acréscimo neste locomover de montanhas processuais menos juiz é, porque a cada dia os atos praticados já não são seus, mais de auxiliares copiladores.
Para finalizar, segue o poema e seu mote (do livro: SILVA, Denival Francisco da. Poemas Reconvencionais: inverso e reflexo das coisas. Goiânia: Kelps, 2011):
Mote
Decreto-Lei 4.657/1942 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: Art. 5º
Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
VELHAS FORMAS DE DECIDIR
(Ctrl C + Ctrl V )
Fernando Pessoa
[…] Às vezes tenho ideias felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam…
Depois de escrever, leio…
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu…
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?…
Por vezes tenho interpretações felizes,
Interpretações extremamente felizes, em dizer o direito, mas …
na urgência de atender e não desagradar, prefiro a cópia feita e fácil.
Depois de copiada, sequer leio…
Por que perder tempo com isso?
De que adiantaria reler isso?
Como haveria de mudar isso? Mas, isto é pior do que eu…
Serei eu juiz apenas teclas (Ctrl C + Ctrl V)
Com que repito a valer o que outros já traçaram?
30 dezembro, 2011 at 14:11
Excelente texto do Denival. Parece-me também que o sistema está sendo montado para o juiz não raciocinar. Estatísticas são ovacionadas. Taxas de descongestionamento ficam em destaque a todo momento. Formulários devem ser preenchidos (infindáveis). Magistrados são colocados diante de mais de sete mil processos. Enlouquecer ou manter uma sanidade cômoda? Nem é tanto cômoda, pois não depende mais dele. Isso é o pior: não depende mais do juiz. Ele está simplesmente imerso no caos. Quando abre sites jurídicos ainda vê a palavra infernal: ESTATÍSTICA.
15 dezembro, 2011 at 22:25
Concordo em parte. É de se reconhecer que o CNJ reserva uma atenção exagerada aos números, em detrimento da qualidade das decisões. Mas por outro lado, o aumento da produtividade pode enfraquecer a imagem de que o Juízes trabalham pouco (ou reforçá-la, em benefício do CNJ, que teria vindo, então, para fazer os juizes trabalharem). De qualquer forma, há litígios demais no País, em âmbito judicial, de sorte que a instituição judiciária não dá conta do recado. O estímulo à conciliação e à arbitragem é uma forma de dar vazão à litigiosidade instaurada em Juízo. A ótica do artigo é verdadeira, mas pende para o sectarismo e é algo estereotipada, permita-me o colega ser franco. A atuação das instituições apresenta aspectos mais complexos e multifacetados do que o artigo deixa entrever. Mas valeu, inclusive pelo estímulo ao debate! Um abraço, colega!
14 dezembro, 2011 at 20:29
de fato, uma realidade, entretanto parece-me um desabafo um tanto quanto pessoal. Seria este um desabafo onde menciona de forma subjetiva um de seus colegas?
14 dezembro, 2011 at 19:43
Como sempre, sua crítica é atual e inteligente. Típica de quem vê a realidade, pensae tem coragem de dizer o que de fato é. Não é de hoje que converso com colegas e ressalto dessa perseguição diabólica por números, quando em verdade, todos sabemos que estes não dizem nada a não ser dados estatísticos, que dvem ser interpretados com cuidado. Querem transformar dignidade em números.